Nota prévia: este artigo foi publicado em Fevereiro de 2002 no Diário Digital, mantem alguns aspectos de actualidade.
O IGIF (Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde), é um organismo da Administração Pública com dois objectivos, como o nome indica: gestão financeira, ou seja na prática, gestão e distribuição dos meios financeiros às instituições do Serviço Nacional de Saúde, e desenvolvimento de aplicações informáticas, bem como implementação e gestão da Rede Informática da Saúde (RIS), um rede privada que interliga as mesmas instituições do SNS.
Sobre esta segunda função, algumas considerações merecem ser tecidas, sobretudo dada a indefinição sobre o seu futuro, ou pior ainda, sobre a decisão que parece estar tomada no sentido de abandonar totalmente o desenvolvimento de aplicações, passando apenas a ser um organismo regulador e normalizador.
Em sentido lato, até se poderá pensar que essa alteração da missão do IGIF poderá ser correcta, nomeadamente nesta altura em que a ordem é a contenção de custos e a redução do deficite. Porém várias questões se poderão desde já colocar: será em todos os casos mais económico adjudicar o desenvolvimento de aplicações às empresas privadas do que desenvolver internamente? Será adequado, independentemente da resposta à questão anterior, abandonar totalmente esse desenvolvimento interno para todas as aplicações?
Convém dizer que as aplicações informáticas desenvolvidas e distribuídas pelo IGIF, se podem dividir em dois grupos distintos: aplicações meramente administrativas, como sejam as de Contabilidade, Gestão de Stocks, Gestão de Recursos Humanos e Vencimentos, por exemplo, e aplicações de Gestão de Doentes, quer para Centros de Saúde quer para Hospitais, que cada vez menos são aplicações meramente administrativas. Serão todas estas aplicações igualmente passíveis de ser desenvolvidas e mantidas por empresas privadas?
Vale a pena centrarmo-nos sobretudo neste último grupo de aplicações, as de gestão de Doentes, para tentar responder, talvez com novas perguntas, às questões colocadas acima. Estas aplicações foram desenvolvidas e mantidas por um grupo muito reduzido de técnicos, cerca de treze, que as conseguiram implantar em todos os Centros de Saúde (8 técnicos), e em mais de 80 Hospitais (5 técnicos).
Estará alguém em condições de afirmar que o seu desenvolvimento e manutenção externos seria mais económico? Alguém sabe quanto custará nesse caso? Foi feito algum estudo económico nesse sentido? Parece ser claro que quanto aos custos, não restarão grandes dúvidas, que não é por aqui que se atinge o pacto de estabilidade, bem pelo contrário.
Em relação à segunda questão, a situação é ainda mais assustadora. Senão vejamos: este tipo de aplicações carece de manutenção e adaptação constantes (que o IGIF conseguiu fazer até meados de 2000), quer por força das mutações legislativas, quer por adaptações a novas necessidades tecnológicas, quer ainda pela heterogeneidade de hospitais que serve, desde pequenos Hospitais de nível 1, até Hospitais Centrais, como o Hospital de São João no Porto, ou o Centro Hospitalar de Coimbra.
Por esta razão, juntamente com o défice técnico dos próprios hospitais, estes têm que ter as suas ‘portas informáticas’ abertas a quem lhes faça essa manutenção, naturalmente confiando que estão apenas ligados à Rede Informática da Saúde (RIS), também ela gerida pelo IGIF. Sucede que também a gestão da RIS está em sério risco por parte do IGIF, porquanto é suportada por um conjunto de técnicos contratados, e já todos procurando novo emprego, tendo--lhes já sido assegurado que os seus contratos não serão renovados.
Ou seja, o caminho do IGIF é não só entregar o desenvolvimento e manutenção das aplicações de Doentes à privada, como também a gestão da própria RIS. Agora perguntar--se--á: entregar o quê, a quem, com que razões? Sendo conhecido que algumas das empresas interessadas em desenvolver estas aplicações, bem como em efectuar a gestão da RIS fazer parte de grupos económicos com interesses na área da saúde, e dos seguros, que garantias está alguém em condições de dar sobre a confidencialidade e o bom uso da informação da saúde dos cidadãos?
Por exemplo, por ordem do gabinete do Ministro, o IGIF tem feito consultas directas às bases de dados dos Hospitais, sem estes sequer terem conhecimento, para monitorizar as listas de espera bem como as faltas à consulta externa. Esta atitude não é de grande respeito para com os Conselhos de Administração dos Hospitais, mas enfim, admita-se que os fins justifiquem os meios: o detentor da RIS, e da aplicação de Gestão de Doentes, extraiu directamente informação, por ordem da tutela, para que esta possa fazer uma melhor gestão dos seus recursos.
Neste caso a tutela é o Sr. Ministro, e a melhor gestão reverterá a favor de todos nós. E quando o detentor, pelo menos o detentor técnico, não for uma entidade do Estado? Que informação será extraída? A mando de quem? Com que interesses? Alguém tem noção do valor comercial dessa informação? Que garantias são oferecidas ao cidadão, que quando quiser fazer um seguro de vida, ou de saúde, a respectiva aprovação não dependa de uma ‘pequena consulta’ às bases de dados de Doentes?
O IGIF têm investido, e distribuído largos milhões de contos nos últimos anos, nas áreas das chamadas tecnologias da informação e comunicação, e quase sempre bem, diga--se. Só que o quadro de informáticos do IGIF é praticamente o mesmo de há quinze anos para cá, sendo os desafios totalmente diferentes. Não basta investir na tecnologia, se não se investir também nos recursos humanos para dela tirar o melhor partido.
Está na ordem do dia o caso das fraudes efectuadas por algumas farmácias, permitidas pela aplicação informática que não distingue as etiquetas dos médicos das suas fotocópias. Alguém sabe que esta aplicação foi desenvolvida em 1988?! Dizia o Sr. Ministro (jornal ‘O Público’, 23/10/2001) “...É possível alargar a centenas ou milhares de médicos o Sistema informático de Apoio ao Médico, já usado em alguns centros de saúde...”. Como? Por quem? Bastará para isso um despacho? Alguém sabe quantas pessoas o desenvolveram? Uma das cinco citadas! Essa mesmo, uma das que o IGIF decidiu que vai deixar de desenvolver...
Contudo todos têm consciência do retorno económico desse sistema. Alguém sabe quantas pessoas desenvolveram e mantêm o módulo de facturação da aplicação de Doentes, responsável por gerar toda a facturação aos subsistemas em mais de 80 Hospitais, no valor de dezenas de milhões de contos? Outra, e só uma das mesmas cinco!
Concluindo, do ponto de vista económico, não faz o mínimo sentido entregar o desenvolvimento e gestão das aplicações de Doentes e da Rede Informática da Saúde a empresas privadas, pois o que foi feito pelo IGIF é um exemplo de ‘omeletes sem ovos’ feitas na Administração Pública.
O caminho deveria ser reforçar as equipas, por forma a darem uma resposta de qualidade às Instituições, bem como à tutela. Do ponto de vista de cidadão, é seriamente assustador o caminho tomado. Dos dois pontos de vista, se o caminho é esse, então não se faça um concurso público, para se pagar mais uns milhões: façam antes uma Oferta Pública de Venda, ou mesmo um leilão que se chegará à conclusão que há quem esteja disposto a pagar por prestar o serviço.
Permito-me lançar uma questão, que me parece ser a mais importante: ainda que fosse mais caro ao Estado, ainda que o Estado não tivesse o know how, não seria uma Função de Estado o desenvolvimento, manutenção e gestão das aplicações Informáticas de Doentes, bem como da Rede Informática da Saúde? Sendo nova, não será esta uma das Funções que o Estado tem que garantir ao cidadão? Dizia o Sr. Ministro (Público, 9/1/2001) “...O Estado, na sua forma actual, servido por uma administração pesada e ineficiente é de longe o que mais convém às corporações predadoras que nele se instalam...” Pode ser exactamente isso que está a acontecer com o IGIF...
P.S.: Estando consciente que o que está na ordem do dia é precisamente emagrecer, a Administração Pública e não o contrário (e partilho essa opinião há muito tempo), ainda assim arrisco dizer que neste caso se estará a “poupar no farelo para gastar na farinha”, se não se fizer o indispensável reforço e rejuvenescimento dos quadros do IGIF, cujos técnicos têm uma média etária de cerca de 45 anos. Não se pode cortar a direito, sem distinguir o que funciona mal do que funciona bem (e não pretendo dizer que todo o IGIF funcione bem) e sem distinguir despesa de investimento.
01 fevereiro, 2006
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